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Feiúra imaginária

 

Evitar ir à praia, cutucar demais a pele do rosto e fazer regime mesmo sem precisar, podem ser sinais de um novo tipo de distúrbio mental

Sintomas:

É difícil acreditar que minúsculos furos no queixo fizeram com que a fisioterapeuta Cristina, 29 (o nome é fictício), ficasse um ano sem sair de casa. As ''sequelas'' de um fracassado tratamento a laser para retirar algumas cicatrizes de acne a transformaram num monstro, na sua opinião.

''Eu realmente via uma aberração no espelho. Tentavam me convencer de que era bobagem, mas me sentia péssima, e queria morrer. Pensei em suicídio várias vezes'', conta.

Quem vê o ''defeito'' no queixo de Cristina não consegue imaginar por que tanta preocupação. São apenas pequenas marcas de acne, encontráveis no rosto de qualquer pessoa que passou por uma adolescência rica em hormônios.

O problema de Cristina não é frescura: ela sofre de uma disfunção mental, recentemente catalogada pelos psiquiatras como ''distúrbio dismórfico corporal'' (DDC), ou ''dismorfofobia''. Em outras palavras, ''feiúra imaginária''.

Os portadores de DCC supervalorizam algum defeito físico _às vezes real, mas insignificante; outras vezes, simplesmente ilusório. Como acreditar que uma pequena cicatriz na testa chama a atenção de todo mundo. Ou imaginar que seu rosto é torto, apesar de todos os seus amigos garantirem que ele é perfeitamente simétrico.

Surpreendentemente, o distúrbio afeta igual número de homens e mulheres _estima-se que até 1% da população dos EUA pode apresentar a disfunção.

O ''feio imaginário'' passa muito tempo se olhando no espelho, procurando imperfeições e tem a idéia fixa de que todos o estão encarando e comentando sobre o seu ''defeito''. Acredita que vai ser rejeitado e humilhado e, por isso, gradualmente passa a evitar a companhia de outras pessoas, deixando de sair de casa (leia os sintomas nos quadros azuis espalhados pelas páginas).

O portador tenta buscar soluções cosméticas para o problema, como repetidas cirurgias plásticas, mas, em geral, considera o resultado insatisfatório.

Outro dispositivo usado é cobrir a ''falha'' com maquiagem ou usar roupas, chapéus ou cortes de cabelo que disfarcem a ''deformidade''.

Estima-se que metade dos ''feios imaginários'' tem consciência de que sua preocupação é obsessiva, mas não conseguem fazer nada a respeito. A outra metade sofre de delírio: tem certeza absoluta de que o ''defeito'' existe e justifica o seu comportamento.

''Mesmo os sintomas parecendo triviais, este é um distúrbio psiquiátrico muito sério, ainda pouco diagnosticado, que causa grande sofrimento, levando cerca de 25% dos portadores a tentar o suicídio'', disse Katharine Phillips, 42, professora-associada de psiquiatria da Brown University School of Medicine, em entrevista à Revista, por telefone, de Providence (Rhode Island, EUA).

Phillips é autora do primeiro livro sobre o distúrbio: o recém-lançado ''The Broken Mirror: Understanding and Treating Body Dysmorphic Disorder'' (algo como ''O Espelho Quebrado: Entendendo e Tratando o Distúrbio Dismórfico Corporal''), da Oxford University Press, ainda inédito no Brasil.

Pouco se sabe sobre as causas da disfunção, descrita pela primeira vez em 1886 pelo médico italiano Enrique Morselli. O "Homem dos Lobos", um paciente do pai da psicanálise, Sigmund Freud, era perseguido pela idéia de que todo mundo ficava olhando para ele. Freud o diagnosticou como neurótico obsessivo.

Como na maioria dos distúrbios psiquiátricos, suspeita-se que a causa seja uma conjunção de fatores biológicos (genéticos), psicológicos e sociais.

O oficial de Justiça norte-americano Doug Tyrrell, 43, é um exemplo dessa perversa mistura de elementos. Em entrevista por telefone de Peabody (Massachusetts), contou à Revista a dificuldade de sobreviver ao distúrbio, nele diagnosticado em 1991.

''O problema era com o meu rosto: eu achava que tinha bolotinhas e pequenas marcas, que hoje sei que são insignificantes. Fiquei obcecado. Tirei todos os espelhos de casa, mas ficava me olhando em superfícies refletoras como torradeiras e janelas de carros. Não queria fazer nada _nem conversar_, perdi o interesse por tudo. Evitava sair porque achava que todo mundo ficava me encarando. Só me sentia confortável à noite, quando está escuro, e ninguém via meu rosto muito bem. Se tivesse gente por perto, pegava um jornal e fingia que estava lendo, só para me esconder.''

Doug acha que o aparecimento do distúrbio teve um fator hereditário. ''Meu avô tinha compulsão de ficar limpando o rosto e as mãos'', diz. O fator psicológico que teria desencadeado a disfunção foi uma crise conjugal. ''Eu me casei em 1985. A minha mulher queria filhos, mas eu não. Quando a melhor amiga dela e a irmã ficaram grávidas, ela ficou muito chateada. Meu estresse foi aumentando e comecei a notar diferenças no meu rosto'', lembrou.

''Nunca estive no inferno, mas, nos 14 meses antes de ter o diagnóstico, cheguei o mais próximo possível. Meu casamento acabou e fui à falência. Provavelmente nunca mais vou me casar, porque não quero que alguém passe pelo que minha ex-mulher passou'', disse Doug.

A ''feiúra imaginária'' também impediu a fisioterapeuta Cristina de levar uma vida normal. ''No primeiro mês depois do tratamento com o raio laser, eu ia trabalhar com esparadrapos no rosto, dizendo que tinha me machucado. Logo depois, pedi a primeira licença do trabalho, porque não conseguia sair de casa. Não deixava ninguém vir me visitar e tinha medo até da minha sobrinha, que é um bebê.''

Até hoje, Cristina toma medicação orientada por um psiquiatra e só voltará a trabalhar no mês que vem.

A dismorfofobia é de difícil diagnóstico porque se confunde com outras disfunções mentais como a depressão e o distúrbio obsessivo-compulsivo. Além disso, o limite que separa a vaidade exagerada da obsessão é cada vez mais tênue.

Nesses tempos de top models, academias de ginástica, dietas, cirurgias plásticas capazes de mudar cada traço do rosto, não haveria uma ''dismorfofobia diluída'' em toda a sociedade? Gastar quatro horas por dia em malhação, não ir à praia para não ter de mostrar a barriga e insistir em regimes, mesmo quando todo mundo diz que você está magro, é sinal de desordem mental ou apenas frivolidade?

''Sabemos que distúrbios relacionados com a imagem, como a dismorfofobia, anorexia e bulimia, têm relações complexas com o meio cultural. Nos EUA, além do padrão de beleza, há toda uma lógica de auto-aperfeiçoamento (''self-improvement''), que faz com que as pessoas que não conseguem atingir esse ideal vejam isso como um fracasso pessoal'', disse a professora de estudos femininos Marilyn Yalom, do Instituto de Pesquisa sobre Mulheres e Gênero da Universidade de Stanford (EUA).

A modelo Ana Maria Zaluski, 19, encarou a cobrança pela magreza como desafio. Depois de um problema hormonal, a modelo chegou a pesar 75 kg. Para quem mede 1,79m, isso até que não seria problema. ''Eu me achava bonita, apesar de não ser esquálida. Quando decidi ser modelo, todos diziam que eu tinha de emagrecer.''

Hoje, cinco meses depois, Ana mede com exatidão o sucesso na empreitada: ''Já perdi sete centímetros de quadril e muitas das pessoas que diziam que eu era gorda hoje comentam 'Nossa, Ana! Quem diria!'''. No entanto, Ana arrumou outro motivo para se preocupar: a ponta de seu nariz, que deve, em breve, passar por uma cirurgia plástica.

Enquanto muitas mulheres sonham com a perda de quilos a qualquer preço, a magreza sempre incomodou a comerciante Raquel César, 28. ''Eu morria de vergonha de usar camiseta regata, não colocava de jeito nenhum'', conta. Aos 18 anos, depois de comer tudo o que havia de mais calórico e tomar todos os complementos alimentares possíveis, descobriu que, em vez de engordar, poderia definir seu corpo.

''Comecei a malhar e, em três meses, meu braço aumentou quatro centímetros. Desde então, nunca mais deixei de usar uma roupa'', diz.

O exercício, confessa, se tornou um verdadeiro vício. Ela malha de duas a três horas por dia, cinco vezes por semana. ''Comecei a sentir dores na coluna. Tive de parar com os exercícios por quatro meses porque forcei demais o joelho'', conta. A comerciante acredita que, se não tivesse uma ''verdadeira mania'' de colocar tudo no lugar, teria feito os exercícios de maneira mais criteriosa, sem arriscar sua saúde.

A preocupação de Alexandre Maciel, 26, com a aparência também beirava a obsessão. O cabeleireiro evitava espelhos a qualquer custo, apesar de viver rodeado por eles, por causa de uma ''papada'', que resolveu corrigir com cirurgia plástica.

''Quando penteava minhas clientes, desviava o olhar do espelho, porque me sentia muito mal'', conta. Maciel se escondia quando alguém aparecia com uma filmadora ou máquina fotográfica. ''Tinha pavor que me vissem de perfil. Também evitava abaixar a cabeça quando tinha gente por perto, porque meu queixo simplesmente sumia'', diz.

Hoje, depois de ter colocado uma prótese de silicone no queixo e afinado e arqueado o nariz, Alexandre diz que recomenda a cirurgia plástica a todos os seus clientes ''complexados''.

Para os psiquiatras, a melhor forma de separar os ''vaidosos'' dos ''loucos'' é avaliar o quanto a preocupação com a aparência limita a vida da pessoa. ''Quando a obsessão ganha uma certa proporção, toma muito tempo do indivíduo, interfere no seu dia-a-dia, no trabalho ou na vida pessoal, o transtorno fica caracterizado'', disse o psiquiatra Tito Paes de Barros Neto, 40, supervisor do Ambulatório de Ansiedade do Hospital das Clínicas.

Tito cita os casos de um paciente que evitava relações sexuais porque achava o pênis muito pequeno e outro que gostaria de arrancar todos os dentes porque acreditava ser dentuço.

Para tratar a ''feiúra imaginária'', os especialistas usam antidepressivos e terapia cognitiva comportamental. Os remédios _Prozac, Luvox e Anafranil_ mexem com a serotonina, neurotransmissor ligado à sensação de bem-estar. A terapia consiste em expor, gradualmente, o paciente a ''situações de risco'' _voltar a se olhar no espelho, sair na rua etc.

Outra alternativa é terapia em grupo. ''Juntamos várias pessoas que têm o mesmo problema para que possam analisar a aparência uns dos outros e dar um feedback. Funciona bem, quando combinado com o remédio'', disse, em entrevista, de Nova York, o psiquiatra Eric Hollander, 40, diretor do Programa de Distúrbio Dismórfico Corporal do Mount Sinai School of Medicine.

Hollander, que já tratou mais de 200 dismorfofóbicos nos últimos dez anos, conta o caso de um paciente que, primeiro, achava a base do seu nariz muito larga. Fez uma plástica. Depois, ficou obcecado com o peito, que seria muito grande. Outra cirurgia. Não satisfeito, encanou com o abdômem, ''muito grande''. Fez lipoaspiração. Em seguida, achou que a operação tinha interferido com a chegada do sangue até o pênis e que o órgão estava se retraindo para dentro do corpo. Quando planejava a cirurgia no pênis, foi encaminhado por um médico ao psiquiatra.

''Embora sejam bons clientes, os dismorfofóbicos trazem muitos problemas para os cirurgiões plásticos. É grande o número de pedidos de indenizações movidos por esse tipo de paciente. Talvez, por isso, os médicos estejam mais interessados em diagnosticar a doença'', disse Hollander. O risco, além de monetário, pode ser de vida: os EUA registraram sete tentativas de assassinato de cirurgiões plásticos nos últimos anos, cometidas por ''feios imaginários''.

Quem se identifica com os sintomas citados pelos especialistas deve procurar um psiquiatra (veja teste na pág. 13) para fazer uma avaliação. Na melhor das hipóteses, você pode descobrir que não está enlouquecendo e que o seu nariz é mesmo muito grande...

Autor: ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA; LAVÍNIA FÁVERO

Editoria: REVISTA DA FOLHA Página: 8 a 13 7/9728

Edição: São Paulo Jul 20, 1997

 

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