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Um Modelo Comportamental de Análise de Sonhos

HÉLIO JOSÉ GUILHARDI

 Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento

Uma cliente, após a morte de um amigo muito querido, disse numa sessão: “Tenho sonhado demais com M, eu que não costumava sonhar... O que está acontecendo comigo?” Respondi que ela tem pensado muito no M, tem sentido sua falta, falado muito sobre ele, lido suas cartas..., portanto, que há de estranho em também ter sonhado com ele? O sonho é uma das muitas formas de se comportar em relação ao M e mantê-lo vivo e presente em sua vida.

Alunos de psicologia, e até mesmo profissionais, ao terem contato com a Análise Experimental do Comportamento e com algumas versões do behaviorismo, têm-se perguntado o que a Terapia Comportamental faz com os eventos internos, como os conceitua e como lida com eles num contexto clínico. Respostas insatisfatórias a essas questões têm levado um importante contingente de estudiosos a se desinteressarem da proposta comportamental para atuação clínica, bem como têm produzido e sedimentado críticas, muitas delas infundadas, contra o behaviorismo. A posição de Skinner (1974), explicitando que o behaviorismo radical, diferentemente de outras versões do behaviorismo, não ignora os eventos internos (pensamentos, fantasias, sonhos etc.), trouxe um alívio para os seus seguidores, em particular àqueles que atuam em clínica.

 

Skinner escreveu extensamente sobre o comportamento humano complexo, elaborando intrigantes análises conceituais e, seguramente, mais da metade dos seus textos referem-se a análises funcionais não experimentais, isto é, à identificação (ou tentativa) de variáveis dependentes e independentes e de processos de interação em exemplos de comportamento humano (Todorov, 1982).

 

No entanto, Skinner não se propôs e não fez incursões sistemáticas pelo universo clínico, não fornecendo, portanto, um modelo teórico-experimental diretamente voltado à prática clínica. Sua proposta é abrangente e inclui a atuação terapêutica, se assim se desejar, de forma que a transposição das análises skinnerianas para o contexto terapêutico ficou como uma tarefa a ser desenvolvida por aqueles diretamente interessados nesse desafio. O presente texto representa um esforço nessa direção. Tem por objetivo explicitar como a análise de eventos internos, em particular os sonhos, pode ser formulada dentro do contexto do behaviorismo radical e apresenta um modelo preliminar de como a análise dos sonhos pode ser incorporada ao conjunto de recursos terapêuticos disponíveis ao terapeuta comportamental, com orientação behaviorista radical.

 

Ecletismo teórico versus ecletismo técnico


Tem havido, infelizmente, entre os terapeutas comportamentais, uma crescente preocupação com temas ecléticos, mesclando linguagens, conceitos e, até mesmo, objetivos de diferentes linhas teóricas, inflando o arsenal de recursos teóricos e práticos ao qual recorrem os terapeutas. Pode-se argumentar que a aproximação de terapeutas de diferentes orientações teóricas com práticas clínicas diversas é um progresso, pois favorece a mútua influência. Essa prática tem um apelo extremamente atraente para os alunos de psicologia, e parece ser a panacéia para as diversidades peculiares da disciplina psicológica. Esta tendência, porém, é perigosa, equivocada e deve ser evitada.

 

Que razões levariam o terapeuta comportamental a abraçar este tipo de ecletismo? Pressões conceituais e metodológicas por parte da comunidade profissional (terapeutas, pesquisadores, estudantes) e práticas, vindas dos clientes que buscam alívio para seus problemas, têm forçado o terapeuta comportamental a enfrentar o desafio de explicitar como tem lidado com os fenômenos comportamentais internos. Sua dificuldade (devido a treinamento terapêutico inadequado e embasamento teórico deficiente) em encontrar, dentro do seu próprio modelo conceitual, respostas para lidar com esses fenômenos psicológicos internos deixam-no desamparado para manejar concretamente boa parte do material clínico trazido pelos clientes. A busca de alternativas em outras propostas teóricas parece ser um comportamento do tipo fuga-esquiva em que se engaja o terapeuta, diante da situação aversiva de ter que lidar com as pressões práticas, por parte do cliente, e conceituais, por parte da comunidade profissional. 

 

O fato de ser difícil trazer para o contexto clínico a análise dos comportamentos encobertos não significa dizer que o behaviorismo radical não abrange a análise dos fenômenos internos com utilidade clínica. Compreende-se, porém, a dificuldade. Basta observar o que é ensinado nos cursos de Psicologia para, facilmente, se constatar que o aluno não é preparado para tal nível de análise. Há carência de textos disponíveis e de centros de treinamento para os terapeutas comportamentais. Disso resulta um contexto peculiar: se, porum lado, o behaviorismo radical inclui a análise, compreensão e possível manejo dos fenômenos comportamentais internos, como e onde se aprende a fazer isso? Os cursos de treinamento e supervisão deveriam incluir essa aprendizagem (Guilhardi, 1982). A situação hoje não é muito diferente da constatada por Swan e MacDonald (1978) que, ao questionarem 353 membros da AABT, concluíram que há uma perturbadora disparidade entre a terapia comportamental, como é ensinada e pesquisada, e a maneira pela qual é implementada na prática.

 

O ecletismo teórico representa, portanto, um exemplo de comportamento de fuga-esquiva, que afasta o terapeuta comportamental do seu papel mais genuíno: trazer para a situação clínica a proposta conceitual skinneriana de como lidar com fenômenos internos. Uma proposta teórica só pode ser criticada e desenvolvida a partir de seu próprio referencial, isto é, o behaviorismo radical só pode crescer e se rever com o engajamento, por parte de seus adeptos, na pesquisa e na reflexão crítica sobre seus conceitos. De nada adianta para o desenvolvimento de um corpo sistemático de conhecimentos a debandada para outras propostas teóricas, conceituais e práticas. Perde a abordagem, perde a Psicologia. Branch (1987) fez uma distinção útil entre ecletismo teórico (este inaceitável) e ecletismo tecnológico.

 

Ecletismo (teórico) pode parecer sedutor, parecer mesmo um exemplo de ‘mente aberta’, mas é inócuo. O desenvolvimento e a compreensão de uma posição teórica é uma tarefa árdua, mas é exatamente esse esforço que leva ao avanço científico (e, portanto, tecnológico). Ter uma visão unificada promove consistência por parte do terapeuta e permite teste e refinamento (ou até mesmo abandono) de sua visão com a progressiva experiência. Assumir uma posição teórica faz com que o terapeuta se torne um participante pleno da empreitada a que chamamos ciência (Branch, 1987, pp. 79 e 80).

 

 

Algumas conceituações teóricas sobre sonhos como eventos privados

 

Os sonhos sempre fascinaram as pessoas e estiveram envolvidos em auras místicas. Dois tipos de questões básicas surgem para aqueles que o estudam: o que é o sonho e qual a sua natureza, por um lado; qual o seu significado e o que representam, por outro. Há fascinantes ensaios sobre os sonhos, propostos por Freud e Jung, para citar dois exemplos mais conhecidos e influentes. 

 

Para o behaviorismo radical, sonhar é comportar-se. O sonho é conceituado como um comportamento como qualquer outro, sujeito, portanto, às mesmas leis que os comportamentos manifestos. Na sua manifestação encoberta ou interna só é acessível ao indivíduo que sonha. Para se ter acesso a ele e poder estudá-lo há necessidade do uso da  autoobservação (uma forma de introspecção) e o relato verbal. A introspecção, aqui, não é a mesma das escolas mentalistas porém, pois se questionam a natureza do que é “introspecionado” e a fidedignidade das observações. Não se trata da busca dos eventos mentais; o que se observa é o próprio organismo. Não se trata de uma pesquisa fisiológica, já que esse não é o objeto de estudo da psicologia. O que o sujeito (que sonha) observa, via introspecção, não é nenhum mundo imaterial da consciência, da mente ou da vida mental mas, uma manifestação, uma classe de comportamentos emitida pelo próprio corpo do observador (Skinner, 1974, pp. 16 e 17).

 

O fato de um indivíduo se comportar durante o sono não deve causar estranheza. Há exemplos de discriminações durante o sono: uma mãe acorda com o balbuciar de seu filho (SD para comportamento de atendê-lo) e não acorda diante de um ruído mais intenso que não tem função discriminativa para seu comportamento de acordar. As pessoas fazem discriminações temporais durante o sono e são capazes de acordar no mesmo horário sem o uso de despertadores; acordam, mesmo, em horários não usuais quando se propõem a fazê-lo, sem necessidade de relógios. O organismo, durante o sono, também se comporta. Não há razão para supor que os comportamentos, durante o sono, sejam regidos por leis diferentes daquelas que operam na vigília. A topografia e magnitude das respostas podem ser diferentes, mas não sua natureza. Os sonhos podem ser conceituados como comportamentos perceptivos que ocorrem durante o sono. O relato do sonho é um comportamento verbal, sob controle de estímulos verbais e ambientais, presentes no momento do relato. 

 

Para um melhor entendimento de como conceituar os sonhos (evento privado) é esclarecedor lembrar como o behaviorismo radical lida com termos, conceitos e construtos. Segundo Skinner (1945, pp. 274 e 275),

 

ganha-se uma considerável vantagem ao lidar com eles na forma em que são observados: como respostas verbais. Significados. conteúdos e referências devem ser encontrados entre os determinantes da resposta e, não entre suas propriedades. Uma classe de respostas verbais não é definida só por sua forma fonética, mas por suas relações funcionais. O que se deseja saber no caso de muitos termos psicológicos tradicionais é, primeiramente, as condições estimuladoras específicas sob as quais eles são emitidos (isto corresponde a “encontrar os referentes”) e, em segundo lugar (e esta é uma questão sistemática mais importante) por que uma resposta é controlada por sua condição correspondente. O indivíduo adquire a linguagem a partir da sociedade, mas a ação reforçadora da comunidade verbal continua a desempenhar um papel importante na manutenção das relações específicas entre respostas e estímulos, os quais são essenciais para o funcionamento apropriado do comportamento verbal. A maneira pela qual a linguagem é adquirida é, portanto, apenas parte de um problema mais amplo.

 

Skinner (1974) explicitou, ainda mais claramente, como o tratamento conceitual dos eventos privados pelo behaviorismo radical se diferencia da forma como eles são tratados por outras elaborações behavioristas: 

 

O behaviorismo metodológico e algumas versões do positivismo lógico excluem os eventos privados do âmbito da ciência, pois não pode haver concordância pública sobre sua validade. A introspecção não pode ser aceita como uma prática científica... O behaviorismo radical, no entanto, adota uma posição diferente... não insiste na verdade pela concordância e pode, portanto, considerar os eventos que ocorrem no mundo privado debaixo da pele. Não chama esses eventos de não observáveis, e não os descarta como subjetivos (p. 16).

 

Skinner argumenta que os eventos encobertos ou “privados” são estímulos observados e não construtos hipotéticos inferidos. Assim,

 

uma pessoa é modificada pelas contingências de reforçamento sob as quais se comporta; ela não armazena as contingências. Especificamente, ela não armazena cópias dos estímulos que fizeram parte das contingências. Não há ‘representações icônicas’ em sua mente; não há ‘estrutura de dados guardados em sua memória’; ela não possui um ‘mapa cognitivo’ do mundo em que tem vivido. Ela tem, simplesmente, sido modificada, de tal maneira, que os estímulos agora controlam tipos específicos de comportamento perceptivo (Skinner, 1974, p. 84).

 

Como Skinner explica a aquisição de respostas verbais aos estímulos encobertos, quando eles não são acessíveis à comunidade verbal? Para Skinner (1974), a aquisição da linguagem é fruto de um complexo processo de contingências sociais. Zuriff (1985) assim resumiu a teoria skinneriana da aquisição da linguagem:

 

A linguagem é adquirida quando as comunidades verbais estabelecem contingências de reforçamento para as respostas verbais. Quando o reforçamento para uma resposta é contingente à presença de um estímulo público particular, aquele estímulo, eventualmente, passa a exercer um controle discriminativo razoavelmente preciso sobre a resposta, e a ocorrência da resposta verbal ou ‘tato’ é um indicador confiável do estímulo. Para estabelecer contingências reforçadoras, a comunidade verbal tem que usar estímulos públicos, os únicos aos quais tem acesso. Portanto, ao ensinar respostas verbais a estímulos privados (por ex.: ‘eu sinto dor’), a comunidade verbal tem que tornar os reforços contingentes aos acompanhamentos públicos da resposta encoberta... Assim, a análise de Skinner começa com o comportamento em resposta ao mundo externo, e a resposta ao mundo interno dos estímulos privados é um produto posterior do treino social. Isso contrasta fortemente com as abordagens epistemológicas tradicionais que começam com o conhecimento do self, a partir do qual o conhecimento do mundo externo é construído. Para Skinner, o autoconhecimento (conhecimento de seus próprios sentimentos, motivos, intenções etc.) é o resultado de uma longa história de treino discriminativo, executado por uma comunidade verbal. Em casos mais complexos, autoconhecimento não é uma simples discriminação de um evento encoberto. Se um estímulo encoberto é relatado como uma pontada de remorso ou de inveja, pode depender da discriminação do contexto em que o evento encoberto ocorre. Os aspectos mais importantes desse contexto são as variáveis independentes que controlam o evento encoberto, bem como o comportamento manifesto, e as disposições comportamentais que surgem dele. Assim, o papel funcional de um evento encoberto pode determinar como esse evento é descrito e conhecido (p. 232).

 

Sonhos (bem como alucinações e imagens de memória) podem ser explicados como decorrentes de respostas perceptuais na ausência dos estímulos externos. Skinner (1963) ilustrou essa conceituação da seguinte forma:

 

O núcleo da posição behaviorista sobre a experiência consciente pode ser sintetizada da seguinte forma: ver não implica alguma coisa vista. Adquirimos o comportamento de ver sob a estimulação oriunda dos objetos reais, mas ela pode ocorrer na ausência desses objetos sob o controle de outras variáveis... (...) também adquirimos o comportamento de ver-que estamos- vendo quando estamos vendo os objetos reais, mas este comportamento também pode ocorrer na sua ausência (p. 955).

 

Assim, segundo Zuriff (l985, p. 230), 

 

perceber é um tipo de comportamento aprendido que, normalmente, ocorre na presença do objeto distal. No entanto, como aquele comportamento é uma função de um número de outras variáveis independentes, ele pode ocorrer na ausência do objeto distal e diz-se, então, que a pessoa está tendo uma ‘imagem’.

 

O sonho pode ser descrito ou narrado, como função de uma simples discriminação de eventos encobertos. Mas, compreendê-lo (determinar de quais contingências ele é função) envolve mais que isso. E necessário colocá-lo num contexto onde serão detectadas as variáveis independentes que determinaram tanto os eventos encobertos como os manifestos. O cliente não consegue fazer esta discriminação sem o auxílio da comunidade verbal. Cabe ao terapeuta auxiliá-lo nesta tarefa. Quando, juntos, logram fazê-lo, pode-se dizer que o cliente está atingindo o autoconhecimento, por ora ainda sob influência da comunidade verbal, em particular, do terapeuta. A determinação do significado do sonho não se baseia, necessariamente, no relato das relações funcionais feitas pelo sujeito, mas nas relações funcionais percebidas pelo terapeuta dentro de um contexto, em que o sonho aparece, em última análise, como elo de uma cadeia comportamental extremamente complexa.

 

Segundo Skinner (1974, cap. 5), para investigar como 

 

uma situação parece a determinada pessoa, ou como ela a interpreta, ou que significado tem para ela, precisamos examinar-lhe o comportamento em relação à situação, inclusive suas descrições dela, e só poderemos fazer isso em termos de suas histórias genética e ambiental. (...) quando pessoas veem coisas diferentes frente a um mesmo estímulo, esta diferença no perceber se deve ao fato de que elas foram expostas aos mesmos estímulos (visuais), mas as contingências eram diferentes. Quando uma pessoa lembra algo que viu alguma vez, ou se entrega a fantasias ou sonhos, certamente não está sob controle de um estímulo presente. Novamente, devemos voltar-nos para sua história ambiental à procura de uma resposta. Após ouvir várias vezes uma peça musical, uma pessoa poderá ouvi-la mesmo quando não estiver sendo tocada, embora, provavelmente, não de forma tão completa ou clara. Tanto quanto sabemos ela está simplesmente fazendo, na ausência da música, algumas das coisas que fez na presença dela. Ver na ausência da coisa vista é uma experiência familiar a todos nós. Tendemos a agir no sentido de produzir estímulos que são reforçadores quando vistos. O ver na ausência da coisa vista é exemplificado de maneira dramática nos sonhos durante o sono. A estimulação visual exerce controle mínimo, e a história da pessoa e os dados resultantes da privação e emoção têm sua oportunidade. Sonhar é um comportamento perceptivo e a diferença entre o comportamento durante a vigília e durante o sono constitui simplesmente uma diferença nas condições de controle. É possível discriminar entre coisas vistas que estão presentes ou ausentes. O homem sedento não estende a mão para pegar o copo de água imaginário; o homem que sonha não sabe, porém, que aquilo que vê ‘não está realmente ali’, e responde com toda a intensidade que é capaz uma pessoa adormecida. (O conhecimento introspectivo do sonho é fraco ou deficiente porque também o são as condições necessárias para a auto-observação, e, quando tal autoconhecimento sobrevive no estado de vigília, seu desaparecimento é no geral tão rápido quanto o esquecimento dos sonhos).

 

O relato verbal do sonho e autoconhecimento

 

O relato do sonho feito pelo cliente é um exemplo de uma classe de comportamento verbal. O terapeuta tem como uma das suas funções auxiliá-lo a utilizar esse material verbal para melhorar seu autoconhecimento. 

 

O autoconhecimento é induzido pela comunidade verbal (no caso específico da terapia, pelo terapeuta) quando ela, repetidamente, questiona seus membros sobre o comportamento em que estiveram engajados, estão engajados e se engajarão, e as variáveis das quais seu comportamento é função. As descrições verbais de contingências que são oferecidas em resposta a tais questionamentos subseqüentemente podem vir a controlar o comportamento do narrador (Skinner, 1969, cap. 6).

 

Segundo Micheletto e Sério (1992), para Skinner, 

 

o autoconhecimento é sinônimo de consciência. podendo haver diferentes graus de consciência correspondendo à quantidade e aos tipos de elementos envolvidos na descrição. Esses diferentes graus teriam como extremos, de um lado, o comportamento modelado e mantido por suas consequências imediatas que seria ‘não só inconsciente’, mas também irracional, irrazoável, não planejado e, de outro, o ‘autogoverno’, quando ‘fazemos nossas próprias regras e as seguimos’. Com isso, abre-se a possibilidade, apesar de todas as dificuldades, de um sujeito consciente e, inclusive por isso, passível de ser conhecido (p. 19).

 

Os sonhos são um dos instrumentos a partir dos quais o terapeuta conduz o cliente ao autoconhecimento. O sonho, como qualquer comportamento, é, em última análise, modelado por contingências. Como se sabe, “o comportamento modelado por contingências é ‘inconsciente`, uma vez que o organismo que se comporta pode não ter conhecimento do próprio comportamento e das variáveis das quais ele é função” (Zettle, 1990). 

Neste nível de controle, o indivíduo será capaz de relatar seu sonho (tem “consciência” apenas de um elemento da tríplice contingência, ou seja, da ação do organismo), mas não estará apto a “interpretá-lo” (descrever as contingências das quais ele é função). Quando é capaz de descrever as contingências, ou seja, quando o cliente faz uma interpretação adequada de seu sonho, diz-se que ele é consciente de seu comportamento e do que o controla. Desta maneira, o cliente que dá uma interpretação adequada para o seu sonho tem um grau mais desenvolvido de autoconhecimento (descreve as contingências das quais seu comportamento é função) do que aquele que não consegue dar a interpretação. Neste caso, o terapeuta deve auxiliá-lo neste processo. A interpretação do sonho, por parte do terapeuta, é um modo de contribuir para o desenvolvimento do autoconhecimento por parte do cliente. 

 

Para fazer a interpretação, o terapeuta precisa observar, entre outras coisas, a que classe de comportamentos (em geral, públicos) o sonho pertence. Ao fazer essa generalização, o terapeuta está em melhor condição de relacionar o que controla o sonho, já que dispõe de conhecimentos sobre aquilo que controla outros comportamentos da mesma classe. O cliente, ao ficar sob controle da análise do terapeuta, está mudando a relação que controla seu comportamento: do controle por contingências para o controle por regras. As regras (“estímulos verbais que especificam contingências”, Hayes, 1987) facilitam a “conscientização” e conduzem o cliente para um outro nível de controle de comportamento, quando este passa a responder por auto-regras (“estímulos verbais que especificam contingências produzidos pelo comportamento verbal da própria pessoa”, Zettle, 1990). Seu grau de autoconhecimento evolui à medida que atinge este estágio. Quando o terapeuta apresenta uma análise de contingências, na verdade, ele está apenas sugerindo, a partir de suas observações, uma possibilidade. Não está fazendo uma análise experimental do comportamento, mas propondo uma análise comportamental, isto é, está descrevendo possíveis relações funcionais na forma de contingências de reforçamento. 

 

Para ser bem- sucedida, uma interpretação precisa ser correta e aceita pelo cliente. Para ser aceita não basta ser enunciada de forma clara pois, se a análise do terapeuta for aversiva para o cliente, ele poderá se engajar em comportamento do tipo fuga-esquiva, tal como não concordar com a análise ou não entendê-la. O terapeuta deve ter a sensibilidade de introduzir a informação de modo gradual (fading-in) e, até mesmo, pode ter a necessidade de modelar alguns padrões de comportamento no cliente de modo a ampliar seu repertório de pré-requisitos para vir a compreendê-la.

 

Se a análise do terapeuta está correta ou não é um problema empírico. Na análise comportamental, qualquer evento deve ser entendido e, mesmo, definido por meio de uma análise contextual (ato em contexto). “A contingência de três termos do behaviorismno radical é uma unidade contextual, dinâmica, espaço temporal: nenhum dos termos pode ser definido independentemente de qualquer um dos outros” (Hayes e Brownstein, 1986). O critério de verdade subjacente ao contextualismo é “trabalho bem-sucedido” ou “pragmatismo”, assim proposto por Hayes e Brownstein (1986):

 

A afirmação de uma relação não é verdadeira ou falsa simplesmente porque há concordância pública sobre a correspondência entre ela e outros eventos, mas de acordo com o impacto que o uso desta informação tem para lidar de forma bem-sucedida com o fenômeno de interesse. O behaviorismo radical compartilha desta visão.

 

Trabalho bem-sucedido envolve predição e controle. A análise feita pelo terapeuta envolve descrição das contingências (provavelmente) em operação como tal, dela deriva a previsão de comportamento e seu controle. A previsão sozinha fornece alguma confirmação do valor de uma análise, mas só o controle a prova. Uma análise só pode ser considerada correta quando comprovada pelo controle. Desta forma, antes de observar os resultados (mudanças efetivas no repertório do cliente) e correlacioná-los funcionalmente com a análise e manejo das contingências, não se pode dizer que essa análise foi correta. Na situação clínica típica é possível observar, dentro de algum tempo, mudanças comportamentais possivelmente decorrentes das análises terapêuticas e do autoconhecimento adquirido pelo cliente. Muito difícil, porém, é demonstrar relações de causalidade. Assim, o terapeuta faz sua intervenção e o cliente pode, então, testar as hipóteses do terapeuta, observando mais acuradamente seu comportamento e seu contexto de vida; pode, até mesmo, alterar alguns aspectos das contingências para verificar o efeito dessas mudanças. Os novos dados são apresentados ao terapeuta e, desse processo interativo entre o cliente e ele, surge, afinal, alguma conclusão mais definitiva. Pode-se atingir, então, o ponto em que a análise daquele comportamento é satisfatória para os objetivos da terapia.

 

A posição conceitual aqui definida é a de que o sonho é material clínico comportamental com o mesmo status de outros conteúdos trazidos pelo cliente. Ele se incorpora ao conjunto de dados e tem significado dentro desse contexto. Da mesma maneira, a interpretação dos sonhos por parte do terapeuta tem o mesmo status que outras intervenções terapêuticas e se incorpora ao conjunto das intervenções. Num contexto clínico é praticamente impossível atribuir a este ou àquele dado, a esta ou àquela intervenção, o papel de mais relevante ou, mesmo, sugerir relações causais, a menos que se faça controle sistemático de variáveis. A aura misteriosa que cerca os sonhos dá-lhes um papel motivacional particular, o que pode, eventualmente, propiciar uma influência maior sobre o cliente. No entanto, isto precisa ser demonstrado.

 

Análise de sonhos como um modelo de análise de comportamentos encobertos

 

Como já se enfatizou, do ponto de vista do behaviorismo radical, o sonho é um comportamento como qualquer outro, sujeito, portanto, às mesmas leis que os comportamentos manifestos, O sonho é comportamento e só isso. Não é expressão de entidades subjacentes. Não compartilha, como em outras propostas teóricas, de significados simbólicos, nem míticos. A análise dos sonhos deve se ater, pelo menos, aos seguintes itens:

 

1.O sonho deve ser visto como um exemplo de comportamento funcional, não uma manifestação de estruturas da personalidade, traços de caráter ou outros conceitos equivalentes. Dessa forma, o sonho faz parte do repertório do indivíduo, devido às contingências de reforçamento às quais responde no momento; bem como das contingências que o modelaram durante sua história de vida. Na prática, isto equivale a dizer que cada interpretação do sonho só pode ser feita para aquele cliente particular, de acordo com seu contexto de vida, O terapeuta precisa conhecer o cliente para fazer uma interpretação funcional do seu sonho. Não há significados universais, nem há resposta única para a questão “o que significa isto ou aquilo...” num sonho. Em geral, as verbalizações do cliente são utilizadas pelo terapeuta como metáforas. Interpretar um sonho, sem conhecer a história do cliente, não é fazer uma análise funcional. Do ponto de vista do behaviorismo radical, isso seria sem sentido.

2.A interpretação do sonho (identificação das contingências de reforçamento das quais o sonho é função) deve buscar integrar o sonho com outros comportamentos que o cliente emite. Ou seja, o terapeuta deve perseguir uma regularidade, um princípio integrador que sintetize as peculiaridades do cliente. O sonho é mais um dado, ou conjunto de dados de comportamento, que permite ao terapeuta chegar a generalizações de como o cliente funciona. O cliente tem, assim, a oportunidade de discriminar a que está respondendo quando sonha e relacionar esta classe de comportamentos com outras classes, e chegar a generalizações sobre as contingências que modelam e/ou mantêm seu repertório comportamental como um todo.

3.A interpretação deve prover estímulos discriminativos para o cliente, alterando a probabilidade de emissão de comportamentos na direção esperada pelo terapeuta, em razão das dificuldades por ele identificadas no cliente. Assim, após a intervenção, o terapeuta deve ficar atento aos resultados, a curto e médio prazos, decorrentes de sua intervenção. Como já foi enfatizado, dentro do contexto clínico é muito difícil estabelecer relações de causalidade e demonstrá-las. Os paradigmas de linha de base múltipla intra-sujeito (o que ocorre com o mesmo cliente após cada análise de sonhos sucessivos?) e linha de base múltipla inter-sujeitos (o que ocorre com diferentes clientes após a análise de seus respectivos sonhos?) parecem perfeitamente adequados como formas de controle experimental em um contexto clínico terapêutico. Em geral, esses estímulos discriminativos aparecem na forma de regras e o que se espera é que o terapeuta coloque o cliente sob controle das regras por ele formuladas (as regras, em geral, aparecem na forma de conselhos, avisos, instruções ou outras formas de comportamento verbal, que no caso da terapia aparecem como análise de contingências, previsão de comportamento etc.).

4.A análise do sonho é um recurso para auxiliar o cliente no seu processo de auto-observação e autoconhecimento. De certa forma, todos nós respondemos ao ambiente pelo menos de duas formas: como pessoa (e, nesse sentido, não tendo necessidade de sermos conscientes das contingências) e como eu (conscientes das contingências que controlam nosso comportamento. Essa conscientização é o resultado da influência da cultura, que produz um conjunto de estados internos que acompanham o comportamento, passíveis de serem observados somente por meio dos sentimentos ou da introspecção. O eu é o que a pessoa pensa a respeito de si mesma.). O autoconhecimento e o desenvolvimento do eu só são possíveis por meio da linguagem. Somente por meio das contingências sociais verbais, que produzem os estímulos verbais suficientes, a discriminação do eu poderá ocorrer e tornar viável o autoconhecimento.

5.Decorrente do item acima, pode-se dizer que a interpretação dada pelo próprio cliente é um indicativo do seu grau de autoconhecimento. Principalmente no início do processo terapêutico, o cliente tem dificuldade para interpretar seu sonho: ora prendesse a aspectos isolados do conteúdo do sonho, ora não consegue propor interpretação alguma. Progressivamente, o cliente consegue identificar melhor as relações funcionais que definem seu comportamento, como fruto da intervenção terapêutica. Da mesma maneira, passa a dar interpretações mais adequadas para seus sonhos: relaciona seu conteúdo com outros aspectos de sua vida, consegue sugerir que contingências estão, provavelmente, operando na determinação do conteúdo do sonho. Neste ponto, pode-se dizer que melhorou sua auto-observação e seu autoconhecimento.

 

 

Por que o cliente sonha em vez de relatar diretamente sua experiência ou fantasia? A análise das contingências que controlam a classe de comportamentos de sonhar, em vez de outras classes, pode lançar luzes sobre a dinâmica comportamental do cliente. Além de que, as diferentes classes de comportamento não são mutuamente exclusivas. Elas se complementam. Certamente, há razões para que um determinado conteúdo comportamental apareça na forma de sonho e não de outra maneira. Resta determinar estas razões. Como os sonhos muitas vezes se manifestam em uma linguagem metafórica, isto favorece a expressão, por parte do cliente, das idéias, sentimentos e fantasias que lhe seriam aversivos, se fossem comunicados de outra maneira. Neste sentido, o comportamento de sonhar seria um exemplo de fuga-esquiva. Quando este for o caso, o terapeuta deve ter a sensibilidade de ser criterioso na análise do sonho para não provocar exatamente a situação aversiva que o cliente procurava evitar. Não se deve supor, porém, que o cliente, “conscientemente”, escolhe um jeito de se comunicar com o terapeuta. O controle do comportamento de sonhar segue os mesmos mecanismos de outras classes de comportamento e, muitas vezes, a pessoa não sabe porque se comporta de determinada maneira. Os comportamentos são emitidos sob controle de contingências, conhecidas ou não, seja na forma de sonho ou de outras formas. Ao lado disso, há também as motivações do cliente e do terapeuta em lidar com sonhos. Os terapeutas podem estimular seus clientes a sonharem e/ou trazerem seus sonhos para a situação terapêutica. Pode-se supor que o comportamento de relatar sonhos possa ser modelado e mantido pelo terapeuta ou, inversamente, ser colocado em extinção. A demonstração empírica dessa possibilidade exigiria uma avaliação sistemática, voltada para esse objetivo. 

 

A interpretação do sonho não é correta ou incorreta em si mesma. Há várias alternativas possíveis, pois, o que importa, é a função que a interpretação tem. A interpretação é preliminarmente uma hipótese a ser testada, como já se viu. Deve integrar os dados disponíveis, mas, em última análise, seu valor preditivo só pode ser avaliado empiricamente. Ela integrou o sonho com outras classes comportamentais? Facilitou a generalização por parte do cliente daquilo que controla seu comportamento? Estimulou a emissão de novos comportamentos que levam o cliente a melhor discriminar as contingências a que responde, e a controlar e alterar tais contingências? Ajudou o cliente no desenvolvimento do seu eu, aprimorando seu autoconhecimento? Se as respostas forem afirmativas, a interpretação cumpriu o seu papel. Caso contrário, precisa ser reavaliada. Como se vê, o próprio cliente faz parte do processo de avaliação da interpretação.

 

As propostas teóricas relatadas poderão ser mais bem entendidas e avaliadas num contexto prático. Segue-se a análise de um sonho para ilustrar como o modelo de análise pode ser aplicado na situação clínica.

 

O modelo de apresentação que adotamos decorre do posicionamento teórico apresentado acima e segue o procedimento adotado na terapia. Assim:

 

1.Cliente: Sob este título cabem todas as informações que o terapeuta coletou sobre o cliente, tudo que “sabe” a seu respeito. Inclui dados relatados, observados diretamente e as sistematizações que o terapeuta fez de todas essas informações. É este corpo de conhecimentos que sintetiza os dados de história de vida, as contingências a que o cliente respondeu e seu contexto atual, sem os quais a análise do sonho é impossível. No presente texto foi apresentado um resumo dos itens essenciais do cliente para compreensão do caso.

2.Sonho: Conforme relatado pelo cliente. O terapeuta após a narrativa do sonho, se necessário, pode fazer questões de esclarecimento, sem ainda apresentar suas interpretações. O cliente é estimulado a escrever seu sonho.

3.Interpretação dada pelo cliente: Solicita-se que o cliente dê sua interpretação do sonho, O objetivo da investigação é tentar captar como o cliente integra os dados do sonho com sua história de vida e seu contexto atual. Serve também para observar até que ponto a análise que o terapeuta vem fazendo de outros sonhos, através das sessões, o influencia. Em suma, a interpretação dá uma medida da capacidade de autoanálise e grau de autoconhecimento (consciência das contingências a que responde, em última análise) que o cliente atingiu.

4.Interpretação dada pelo terapeuta: O terapeuta pode apresentar sua interpretação, isto é, como sistematiza e integra os dados oriundos do sonho com outros dados trazidos pelo cliente. Interpretação, aqui, significa integração de dados, busca de ordem e regularidade no comportamento do cliente. Além disso, o terapeuta busca dar SDs para o cliente compreender as contingências de reforçamento que estão, possivelmente, em operação. Também esta intervenção deve estar integrada com outras intervenções, mas de modo que, o comportamento, de analisar, do terapeuta, também seja sistemático, ordenado e regular. Finalmente, o terapeuta deve prover SDs para a ação do cliente, de modo que este possa testar a realidade, isto é, entrar em contato com as contingências de reforçamento de sua vida (o que serve de teste para verificar se as contingências referidas na análise têm a ver com as contingências reais). Desta forma, o cliente não fica exclusivamente sob controle de regras (análise do terapeuta), nem exclusivamente sob controle de contingências (sem consciência do controle a que responde). Integra regras (que descrevem possíveis contingências) com teste de contingências, o que produz autoconhecimento e daí autogoverno. Eventualmente, o terapeuta pode não ter clareza do processo para fazer uma interpretação. Neste caso, aguardam-se mais dados.

5.Resultados: Há resultados a curto prazo (por ex.: o que ocorre na próxima sessão) e a médio prazo. Uma análise adequada deve incluir previsão e controle do comportamento. Em última análise, são os resultados que comprovarão a utilidade e adequacidade de uma interpretação. A questão que pode ser feita é: o que a interpretação produziu no cliente? em que ele se modificou? Como a interpretação do sonho é uma, dentre muitas variáveis manejadas no processo terapêutico típico de uma situação clínica, é impossível atribuir a ela uma exclusiva função de causalidade. Pode-se, porém, detectar “influências” que a análise do sonho tem sobre o comportamento do cliente. Num contexto clínico essas prováveis relações de causalidade são muito úteis, embora lhes falte o status de causalidade científica comprovada. 

 

Cliente

 

Mulher, 39 anos, casada, dois filhos. Queixava-se de que tinha fortes sentimentos de incompetência e improdutividade, parecia-lhe que “pessoas mais burras” conseguiam ir mais longe profissionalmente; fazia tudo parecer difícil; era detalhista, tinha interesses diversificados mas não conseguia se concentrar em nada; era muito crítica; pouco criativa; começava, mas não terminava as coisas. Nos fins de semana sempre achava que tinha que estudar, trabalhar, deixando os filhos, o marido, a casa e o lazer em segundo plano. Sentia-se culpada por isso. Só falava dos seus problemas: aulas, reuniões, dificuldades administrativas, uma tese de doutoramento que não acabava nunca. Sentia-se assexuada. Tinha sono, “muito sono”, depressão nos fins de semana. Comia em exagero e sentia-se gorda. Cobrava-se por não praticar esportes, por não ter vida social, por não ter tempo para curtir coisas boas da vida que estavam ao seu alcance. Sentia-se muito presa à mãe: questionava os valores dela, mas não conseguia se libertar.

 

Sonho

 

Estava no meu laboratório, mas num prédio diferente daquele em que trabalho. Era multidisciplinar. Fui centrifugar algumas amostras. Estava fazendo cultura de linfócitos e esquecia os tubos na centrífuga. Isso me deixava nervosa, com medo de perder as células. Não podia curtir, nem conversar. Que aflição! Encontrei meu primo C (explicou que este primo, quando adulto, abandonou toda a família e foi viver sozinho. Nunca mais quis saber dos pais, irmãos ou quaisquer familiares. Na infância era um “modelo” de filho). Ele estava de bengala, muito bonito. Olhei de longe e perguntei se podia me aproximar. Ele disse que sim e o abracei e conversamos. Foi tão bom! Nós estávamos bonitos, ficamos conversando horas! Andei de braço dado com ele e tia O (esta tia morreu já há alguns anos. Sempre foi muito carinhosa com a cliente, compreensiva, muito íntima afetivamente). Os dois estavam fumando e me ofereceram. Lembrei-me de que não fumava mais. Estava feliz com eles.

Vi-me de novo no laboratório. Estava mostrando meu trabalho para Z (foi orientadora da tese de mestrado da cliente). Ela deu palpites interessantes. Eu procurava alguns trabalhos para consultar e não os achava. Interpretação dada pela cliente Esse sonho relata minha vida, como eu sou. Sempre preocupada com as coisas por fazer, tentando fazê-las melhor, sem nunca conseguir “curtir” a vida, O sonho me deixou muito angustiada, exatamente como me sinto no dia-a-dia. Sentia-me culpada por ver que ia deixar a amostra se estragar.

 

Interpretação dada pelo terapeuta

 

No seu sonho me chamou a atenção a centrifugadora. A força centrífuga pode expressar, de modo metafórico, seu desejo de sair do eixo de sua vida, que não muda, que a prende nas mesmas rotinas, que a faz repetir compulsivamente suas obrigações, gerando sentimentos de culpa e incompetência, perda de expressão de afeto e da sua sensibilidade. 

Na sua interpretação, você não deu atenção ao primo e a tia. Foram duas pessoas com as quais você conviveu e que foram capazes de viver da maneira mais próxima daquela que você deseja: o primo rompeu de forma radical com o esquema familiar; a tia era capaz de viver afetivamente... Será que não aparecem como modelos para você? Representam seu desejo de romper com os valores considerados “certos” e a ânsia para viver uma vida livre, afetiva e espontânea? Esses seus desejos estão reprimidos e depende de você conscientizar-se deles e criar condições para viver diferentemente, provocar algum tipo de revolução em sua rotina. Quem sabe usar a força centrífuga...?

 

Resultados

 

Algumas mudanças ocorreram a curto prazo. Assim, a cliente havia perdido o prazo para solicitar ajuda de custos para participar de um congresso internacional. Perdeu o prazo por excesso de zelo na preparação do documento de solicitação de verba. Nas semanas seguintes à do sonho apareceu com a notícia de que havia ido atrás de duas instituições para conseguir o dinheiro para o congresso. A primeira não deu uma resposta definitiva. Procurou outra e conseguiu o auxílio pleiteado. Essa iniciativa foi inédita na vida da cliente. Ao lado disso, a cliente relatou suas intenções de se divertir durante o congresso: “chega de ir e ficar exclusivamente nas salas de palestras e comunicações, me torturando por não ser tão brilhante quanto este ou aquele pesquisador, lamentando não ter me organizado para levar meus trabalhos, ou diminuindo o mérito de minhas comunicações.” Tomou, inclusive, iniciativas para isso. Antes de reservar as passagens entrou em contato com algumas pessoas amigas que iam ao congresso para combinar o mesmo vôo, mesmo hotel. Todas essas iniciativas foram tomadas pela cliente, sem nenhuma intervenção direta do terapeuta. A relação entre a interpretação do sonho e as ações foi feita pela própria cliente: “resolvi que ia começar a mudar minha vida.., afinal, a força centrífuga sou eu mesma... Embora a mudança imediata tenha ocorrido na área profissional, não se restringiu a ela. A cliente tem procurado mudar seu estilo de vida: tem dado menos ênfase ao trabalho compulsivo e se dedicado mais ao lazer e a participar da convivência com os filhos e marido.

 

Outras mudanças ocorreram ao longo de aproximadamente um ano. Assim, na área profissional, retomou e defendeu sua tese de doutoramento e publicou dois trabalhos, em revistas especializadas, com os dados da tese, uma delas internacional. Recebeu uma carta de um professor titular de Medicina da USP, que, ao ler seu artigo, escreveu: “poucas vezes vi na literatura um relato de caso tão bem escrito.., você tem um futuro brilhante...” Está fazendo um curso de pós-doutorado de dois anos nos EUA. Na vida pessoal, perdeu peso, mudou seu estilo de se vestir para um padrão mais jovem e descontraído. Tem questionado sua vida afetiva e sexual, e procurado, concretamente, atuar no nível de suas dificuldades. Tem conseguido se libertar dos valores e influências da mãe e conduzir sua vida segundo seus critérios. 

 

Comentários

 

A interpretação dada pela cliente é mais estrutural: ela repete na sua interpretação o que vem dizendo durante as sessões. A do terapeuta é uma interpretação funcional e estimula a expressão dos desejos de libertação e de agir, para mudar seu estilo de vida. Algumas mudanças iniciais na cliente parecem ter sido influenciadas pela metáfora da força  centrífuga sugerida pelo terapeuta. A própria cliente assim o explicita. As mudanças a longo prazo foram produzidas por uma gama mais ampla de influências. Não se deve afirmar que apenas a interpretação do sonho teve o efeito dramático de levar a cliente a todas essas mudanças. Muitos fatores estão operando em conjunto para isso, intra e extraterapia. Convém lembrar que o sonho e sua interpretação compõem um aspecto no processo global da terapia. É muito difícil atribuir relações de causalidade a eventos específicos, quando não se têm controles experimentais adequados. A cliente, porém, no correr do processo terapêutico, com freqüência se referiu à “centrifugadora” como ponto de partida para sua “revolução pessoal” e como um “símbolo” que a estimulou a buscar seus objetivos. 

 

Referências

 

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